Home » Como a falta de sono prejudica a memória de longo prazo
Refletir sobre um problema pode não nos levar a uma conclusão, mas, se dormirmos com ele, muitas vezes a solução brota em nossa mente
Quando aprendemos uma coisa nova, seja andar pelo centro de uma cidade desconhecida, seja a fórmula de um composto químico, temos a impressão de que o aprendizado ocorre durante o tempo em que estamos interagindo com a novidade. Nada mais enganoso, faz anos sabemos que o aprendizado continua nas horas seguintes, quando o cérebro reorganiza e estoca na memória de longo prazo a experiência vivida. E grande parte desse processamento ocorre quando dormimos. É por isso que usamos a expressão “deixe eu dormir com o problema, amanhã decido”.
De fato, refletir sobre um problema exaustivamente pode não nos levar a uma conclusão, mas, se dormirmos com o problema, muitas vezes a solução brota em nossa mente ao acordarmos. O exemplo mais famoso é o caso do químico Friedrich Kekulé que em 1865 estava quebrando a cabeça para explicar as propriedades do benzeno (é o que você compra na farmácia com o nome de benzina) que possui seis carbonos, mas tem propriedades estranhas. Ele estava desenhando as possibilidades na frente da lareira quando caiu num sono profundo e acordou sonhando com uma cobra mordendo o próprio rabo. Concluiu que, no benzeno, os seis carbonos formavam um círculo e não uma estrutura linear. E a estrutura circular explica suas propriedades químicas.
O cérebro de Kekulé continuou processando o problema e descobriu a solução durante o sono e apresentou o resultado à consciência na forma do sonho da cobra mordendo o próprio rabo. Na época Freud, que nasceu em 1856, tinha 9 anos.
Sabemos também que parte do processamento que ocorre durante o sono é a formação de memórias de longo prazo. Podemos aprender alguma coisa hoje e o aprendizado fica no cérebro por somente algumas horas se não for transformado em uma memória de longo prazo. Quando estocado na forma de memória de longo prazo pode durar décadas (foi da minha memória de longo prazo que retirei o exemplo do Kekulé).
Sabemos também que, se impedirmos o animal de dormir na noite seguinte, a conversão do aprendizado em memória de longo prazo fica prejudicada. É por isso que estudar e em seguida depois de ir a uma balada é uma furada e é por isso que alunos são estimulados a dormir cedo e bem durante a semana. E isso traz o problema das sextas-feiras: será que as aulas de sexta são menos proveitosas porque os alunos vão para as baladas sexta à noite?
Pois bem, agora os cientistas descobriram o mecanismo que transforma o que ratos aprenderam durante o dia em memórias de longo prazo e descobriram como esse mecanismo deixa de funcionar se o rato não dormir na noite seguinte. Sete ratos foram operados e um conjunto de 128 eletrodos foram implantados em cada lado do cérebro da área que responde aos estímulos do aprendizado. Esses ratos foram colocados de manhã em um labirinto que nunca haviam explorado. A recompensa por navegar no labirinto era a água no fim do caminho.
Nessas condições se sabe que os ratos aprendem a navegar pelo labirinto e descobrem o caminho até a água. Em seguida os ratos eram retornados a suas gaiolas normais com água e comida. Nas horas seguintes, metade dos ratos era deixada em paz para relaxar e dormir. A outra metade era cutucada de leve cada vez que ia dormir e, portanto, tinha seu sono interrompido.
Experimentos anteriores já haviam demonstrado que os ratos que não dormem bem não guardam tão bem o conhecimento necessário para se localizar no labirinto no dia seguinte. Durante todo o tempo a atividade cerebral dos ratos, medida pelos eletrodos capazes de detectar a atividade de centenas de neurônios, era monitorada e registrada.
Durante o tempo que passaram descobrindo como se orientar no labirinto, os neurônios monitorados disparavam sinais elétricos em ondas rápidas que se espalhavam por essa área do cérebro. Esse padrão era distinto em cada fase da exploração e só passava a ocorrer quando o rato era colocado no labirinto.
Após sua retirada do labirinto os ratos que podiam descansar e dormir, caíam no sono e, durante o sono profundo, esses padrões eram repetidos diversas vezes de maneira muito similar ao que acontecia durante a exploração. Era como se os cérebros estivessem revivendo a experiência. Essa estimulação repetitiva dos mesmos neurônios que ocorrem durante o sono é o que provoca as mudanças nos circuitos neuronais associadas à formação das memórias de longa duração.
Nos ratos em que o sono era restrito, esses mesmos neurônios iniciavam essas ondas e o número de atividades desse tipo era muito maior, mas o padrão e a intensidade das ondas era diferente. As ondas eram pouco organizadas e de menor intensidade, não repetindo os padrões observados durante a exploração do labirinto.
A interpretação mais simples dessa observação é que a interrupção constante do sono impedia o cérebro do rato de repetir (ou reviver) as experiências do dia, impedindo a formação das memórias. O interessante é que, se após 9 horas impedindo o sono os cientistas permitiam ao rato dormir, nesse segundo intervalo as células não reproduziam mais o que tinham experimentado durante a investigação do labirinto.
Estes resultados indicam que o mecanismo que leva a transformação de memórias recentes em memórias de longo prazo envolve a repetição, durante o sono profundo da atividade neuronal que ocorreu durante o aprendizado inicial. E mais, que essa repetição tem que ocorrer durante o sono logo após o aprendizado, ou seja, existe uma breve janela temporal em que o aprendizado estocado na memória recente pode ser transformado em memória de longo prazo.
Esta é a primeira vez que é detectada, em neurônios, a consolidação das experiências adquiridas. E as consequências práticas desta descoberta são duas: no caso de memórias que queremos guardar por mais tempo é importante dormir bem depois do aprendizado. E, no caso de experiências traumáticas, talvez evitar que a pessoa durma logo depois ajude a evitar que esse trauma se consolide como uma memória de longo prazo. Essas duas hipóteses estão agora sendo testadas, mas será interessante se for confirmado que evitar o sono após um trauma nos ajudar a superar as experiências do trauma.
Fonte: Artigo de Opinião originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo, com informações da revista Nature.
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